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ENTREVISTA: Francesca Azzi, curadora do Indie Festival de Cinema

 

Aguardamos esse especial dia das mães para apresentar nossa coluna de entrevista homenageando nossa entrevistada, Francesca Azzi, curadora e uma das fundadoras do Festival Indie de Cinema que acontece a 18 anos em Belo Horizonte e alguns outros anos em São Paulo. Francesca me recebeu com simplicidade e receptividade e o mais gratificante foi sua sinceridade para tratar os mais diferentes e duros temas que envolvem esse festival tão rico e raro, e que plantou sementes no coração de múltiplas pessoas. Atualmente, o Indie passa por sérias dificuldades para acontecer uma vez ao ano, devido a diminuição de incentivo governamental.

Convidamos a lerem com carinho essa que foi uma conversa informal de um admirador do Indie com a matriarca corajosa desse festival que proporciona a oportunidade única de experimentarmos um cinema extremamente diverso, libertador, instigante e que não temos a chance de ter acesso facilmente. Convido a lerem avidamente tudo, pois não filtramos nada e continuamos na expectativa de serem fisgados por essa mesma paixão que o Indie Festival representa a nós.

 

É uma honra entrevistá-la. Acompanho o Indie a bastante tempo e costumo falar que cada edição equivale a um semestre de faculdade de cinema.

“Interessante você falar isso nunca tinha pensando dessa maneira..”

 

No dia da abertura quando você foi apresentar a Edição 18, não pude deixar de notar  algo, pois sempre faço uma comparação do filme de estreia com o comportamento geral dos filmes da mostra, ou então aquele filme de abertura para o que é o Indie daquele ano.

Assim, não pude deixar de notar que o filme “Aika” é um filme de sobrevivência. E não tem e não precisa ter uma conclusão. E lembro bem de suas palavras: “durante todos esses anos tenho a certeza que cumprimos nosso papel de efetivamente formar um público, de formar a opinião de um público e, só por isso, valeu a pena”. Isso me veio na cabeça como se fosse uma oportunidade de se despedir caso o Indie viesse a ter esse momento,

“É exato.”

 

 

Principalmente por analisar os catálogos dos anos anteriores e perceber essa ameaça forte há algum tempo. Pois bem, é horrível essa coisa de “comente o que falou”. Assim, em cima de tudo que já falou no dia da abertura, há algo que queira falar a mais ?

 

 “Eu acho que no Indie a gente sempre teve a vivência dessas intempéries politicas, essa questão de ser um festival que precisa das leis de incentivo pra acontecer. E nós somos tão apaixonados pelo Indie que se ele não acontecesse era quase como se fosse uma derrota pessoal. Então eu acho que o que eu quis dizer é que a partir de agora o meu lado espiritual está tranquilo, pois de certa forma eu não posso ficar sofrendo tanto se eu dependo dos incentivos e eu não consegui transformar o Indie em algo comercial (e nem era essa a intenção). Dependemos de lei de incentivo que basicamente é dinheiro de imposto. Tem as empresas no meio, mas basicamente foi dinheiro público que usamos pra fazer esses 18 anos de história. E a gente prestou conta dessa história em termos do evento que fizemos. E eu me sinto como uma missão cumprida pois, poxa, eu fiz todos os esforços para que o Indie não tivesse que tipo ‘vender a alma pro diabo’, vamos dizer assim, pois na verdade eu nunca fui uma pessoa muito politica e nem gostava desse papel.

Essa coisa sabe de ter políticos no festival… que sempre foi uma coisa muito complicada e sempre tivemos restrições a isso porque afinal se você quer liberdade é necessário uma certa independência. Então sempre nos mantemos íntegros nessa questão da independência. Só que isso faz com que não tenhamos tantas articulações institucionais. E acho que fomos de um certo modo incompetentes nessa questão de articulação e marketing porque na verdade a gente queria apenas fazer um festival e pensávamos que não precisávamos de todas essas outras coisas.

No primeiro Indie, tivemos o incentivo da prefeitura e fomos fazer o festival. Não sabíamos que ia ser tão legal e que teria aquele sucesso! E que ia crescer tanto e ser referência ao público. E aí foi o que aconteceu. No entanto ficamos presos a questões políticas. A qual governo que vem e qual política cultural vai ser adotada.

E agora veio esse novo governo federal que já veio dizendo que a cultura não é importante não é?! E as coisas estão fechando, está havendo um desmonte que já estava acontecendo no governo Pimentel devido a crise econômica. Que dizer, também não é só uma questão de partido politico, é uma coisa que já vem a 4 anos, infelizmente. Poderia dizer, no governo PT estava tudo garantido, mas isso não é verdade, não estava! Todo mundo sentiu esse baque que acontecia a mais ou menos 04 anos.”

 

 

Belo Horizonte é muitas vezes encarada como termômetro para testes com o público. Você já falou em outros momentos que é natural que o público vá mudando, como em categoria de idade, que vá envelhecendo, que venham pessoas novas.. Eu sei que é difícil traçar 18 anos, mas se fosse possível mensurar, como você sente de lá pra cá esse público?

 

“Olha o público mudou muito durante esses 18 anos. Em alguns momentos eu senti que o público deu uma esvaziada. Eu falei, onde que estão os jovens ? Nunca abandonaram, mas deu uma esvaziada. Também pela crise dos cinemas, porque tínhamos o Usina que era um polo, temos o Belas Artes e também tínhamos o Usina Savassi, tínhamos o Oi. Ou seja, tínhamos uma circulação de gente. E o Usina foi muito importante pro Indie, pois lá era a ‘Central’, as coisas aconteciam lá, os convidados, os debates, nos tentamos vários tipos de coisas. E quando ele fechou foi uma quebra pra cidade em termo de cinema de rua. O Sesc Paladium entrou mas ele tinha uma sala pequena então não conseguiu suprimir. E o Belas Artes ficou meio desgastado, ele não está no potencial que ele tem, embora ache que ele ainda tenha chance de se resgastar.  E o ‘Espaço Oi’ fechou. E temos o Cine Humberto Mauro, onde sempre aconteceu o Indie também.

Ou seja, foram muitas historias. Mas em termos de público o que eu percebo é que no inicio era aquela coisa maior. Mas acho que tem haver com a mobilização e o cinema que proporciona esse encontro, pois se temos 04 salas onde acontece o Indie é diferente de termos apenas uma, pois temos uma programação maior e mais variada. As pessoas entram e saem, era uma loucura (boa). Então se tivéssemos um cinema de rua com quatro salas o Indie estaria sempre lotado. As pessoas falam: ah o Indie não lota mais.. Não é bem assim, é diferente quando temos disponível apenas uma sala.

E as pessoas que vieram na abertura, tinha gente que vinha em 2001 e vem falar oi com a gente. Muitos são da área (diretores de cinema, publicitários, videomakers) e falam pra gente que o Indie foi muito importante na sua formação.

O médico de minha mãe, um geriatra, ele fala: ‘eu sou apaixonado pelo Indie’. E olha só, ele não é da área, temos sim um público diversificado. E que está atento. Ou seja, tem sim um público adulto que já saiu da faculdade e acompanha e consegue manter essa chama de ser cinéfilo, apesar de Belo Horizonte estar devendo lugares para essas pessoas. É muito pouco cinema. Então acho que o Indie sofreu esse baque em função da própria cidade.

E o público vai mudando. Recebemos um grupo mais jovem, vocês viram isso, e eu acho que BH de uns anos pra cá o público jovem está muito mais articulado, mais ativista, pois o ativismo foi uma coisa que veio muito forte desde 2013 pra cá. Isso pro cinema é ótimo, principalmente porque temos uma linguagem que fala mais para o ativismo.”

 

É curioso como em momentos como de crise política e de restrição de liberdade como estamos observando que está acontecendo, verificamos esse levante de movimentos novos que chegam e tem uma voz, uma fala, posicionamentos.. eu acho isso incrível!

 

“É, meu filho falou pra mim: mãe, ‘não fica triste por o Bolsonaro ter ganhado (eu fui publicamente contra) porque em época de crise é que nascem as melhores poesias’. Eu falei obrigada filho. Foi a única coisa que me consolou naquele momento.

Teve um inconformismo muito grande pra quem é de esquerda. E não em função do PT porque eu diria que se tivesse ganhando o Ciro ou até um PSDB eu teria aceitado melhor.”

 

 

Seria menos radical do que está acontecendo agora.

 

“Seria menos radical. Realmente fomos para uma direita radical e pra gente que é da área cultural, da área de cinema, isso foi publicamente muito difícil de aceitar que milhões de pessoas elegeram Bolsonaro.”

 

 

Eu jamais imaginei que iria viver esse momento. Pensava que na pior das hipóteses teríamos um período apenas focado na rotatividade de polos de poder. Mas eu sinto como se tivéssemos que reviver tudo o ocorreu naquela época terrível (ditadura militar).

 

“Eu ficava pensando no meu filho e ficava muito inconformada dele ter que viver esse momento politico do Brasil tendo vivido tudo que a gente já estava vivendo em termos de mais aberto. Eu venho de uma geração que quebrou padrões onde você não podia ser gay e todo mundo saiu do armário se assumiu e se manifestou, pois minha infância foi na ditadura militar. Nos anos 80 quando entrei na faculdade, vivi as ‘Diretas Já’. Na minha infância e juventude eu vivi tudo da ditadura militar. E quando você tem essa abertura, onde as pessoas votam e podem ser aquilo que elas são, é maravilhoso!

E mesmo que tenhamos um governo mais ou menos, quando da época de FHC, Lula ou Dilma tínhamos uma democracia. E o medo de se perder isso é muito grande. Eu fico triste pelo meu filho que é jovem eu fico triste de ver que sua juventude pode ser massacrada por uma repressão. Por enquanto está tudo ‘ameno’, houve um carnaval das ruas. E vamos lutar para que consigamos manter essa liberdade tanto da juventude quanto das manifestações culturais.”

 

 

Eu observo na vida real esses pontos de violência. E essa questão de mudança cultural também vejo claramente aqui em Belo Horizonte. Eu não sou daqui, sou de Belém do Pará, e nos primeiros anos morando em BH não tinha carnaval na cidade, era morto. E vendo o que acontece agora fico maravilhado. Eu vejo claramente um juventude menos careta, tirando aos poucos aquela imagem do conservadorismo mineiro..

Um ponto, o Indie meio que tem uma coisa de, não sei se é o correto rotular, mas é como se ele tivesse a fama de Cult. De fato ele é um fenômeno diferente.

Em uma edição presenciei um fato: um senhor morador de rua entrou numa sessão, e era um filme “difícil”. Eu sou da turma que curte esses filmes. Não recordo qual era o longa. Ele infelizmente não ficou nem 10 minutos e foi embora.

Como otimista sempre quero que o festival alcance o mais abrangente possível de público. Como você vê isso?

 

 

“Eu acho que infelizmente o cinema que exibimos não atinge o máximo de pessoas. Porque ele tem uma questão toda de formação. Ele está muito vinculado a um cinema conceitual. Então se você não tem um mínimo de repertório ou se você não é fisgado pra tentar desvendar como você falou: tem um código ali que não entendi, mas tudo bem vou assistir outro filme da mesma cineasta pra tentar fazer um link. Ou seja, não estou dominando mas vou atrás pra entender.

Esse elo do conhecimento o Indie captura ou não. Eu acho que o jovem está mais aberto a isso. Também geralmente se você já tem uma formação, tende a rejeitar aquilo ali. O jovem não, ele fala: ah não gostei tanto mas vou assistir outro filme..

Eu acho que envelhecer é de certa forma enrijecer. E isso faz com que, infelizmente, o Indie tenha uma conexão maior com o público mais jovem e o público mais cinéfilo. Não precisa ser formado em cinema. Mas a formação de cinéfila. Isso sempre foi um aspecto que a gente respeitou.

As pessoas falavam: ah o Indie é para iniciados.. A gente até comentava que era para Insider e Outsider. Os Insider dominam um conteúdo, conhecem determinados diretores que estou exibindo. E Outsider é aquele que transita, vê determinado filme e quando não gosta vai para outro.

É como a literatura ou qualquer outra arte, quanto mais você estuda, mais você tem uma relação com aquilo de uma maneira mais profunda. Se você não se interessa não será capturado.

Por outro lado, a gente sempre teve um lado POP no Indie pra justamente chamar um público diferente. Exemplo é a Mostra Música do Underground que fizemos durante anos para as pessoas que gostam de rock, punk, alguma manifestação de música que dava documentário. E era uma coisa que tinha filme que dava briga eu lembro, disputado. Mas também tinha muito filme esquisito também.

Esse fator de trazer coisas fora do domínio, do seu código, foi muito importante dentro do Indie. Depois eu acho que a gente reduziu muito nessa variedade devido a questão orçamentária. Em consequência,  talvez a gente não tenha tido esse trabalho tão grande de capturar esse público.

Mas tivemos essa preocupação de captura desse público mais abrangente. A gente pensava nisso.  Pensávamos, vamos pegar aquela pessoa que acha que não pode ver um filme indie. Vamos botar ela na sala que vai ficar tão encantada que vai querer ver o resto. E isso aconteceu com muita gente, porque muitos vieram me falar: nossa eu não conhecia esse tipo de filme, não sabia que esse tipo de filme existia, e agora não consigo ver outro..  Embora você possa ver alguns títulos nos serviços de streaming como ‘Now’.”

 

 

É verdade, a pouco tempo vi no Telecine Play um filme do Kiyoshi Kurosawa e fiquei surpreso.

“Sim ele vende bastante, principalmente por ter muito suspense. A gente acabou distribuindo um filme dele depois..”

 

 

Sim sim, o filme “Creepy

“Exato..”

 

 

 

Perguntei isso a você por essa questão do marketing e alcance a um público maior. Percebi claramente que existiam filmes difíceis, existiam outros que eram uma espécie de ‘acorda!’, como um choque, existiam outros com uma estética atípica …

  

“Como os filmes tailandeses e os filipinos. É o caso do diretor Lav Diaz que é uma coisa diferente, seu filme “Estação do Diabo”, que acho que não tenha visto um filme na vida como esse, absolutamente original. Nunca vi ninguém fazendo um filme assim. E eu penso que uma pessoa que não sabe nada de cinema e entra numa sessão dessa fica pensando: o que é isso! Meu deus do céu !

Pra mim eu fiquei completamente maravilhada.  Porque eu tenho pra mim que você pode tudo no cinema! Você pode fazer o que quiser, por que um filme não pode demorar mais, ou outra coisa,..  E o Lav Diaz pensa exatamente assim, pensou que pode fazer os diálogos do filme totalmente diferente. E por que não? E tudo dentro de uma questão política. Um filme muito original e também muito triste.”

 

Uma coisa que talvez as pessoas não façam ideia e tenham curiosidade. Como é feita a captação desses filmes, a escolha, a pesquisa deles?

 

“Antes quando a gente só fazia o festival, a gente começava seis meses antes, ia a festivais e também depois começava aquela coisa de screener, onde a gente pegava com as distribuidoras/produtoras as cópias dos filmes em CD (antes de seu lançamento). E agora você tem esse acesso por links. Você vai pra Berlim e fala com as pessoas que fazem os filmes, mas também pode falar diretamente com as produtoras. E aí você tem 100 filmes pra ver. Há filmes com destaque em festivais o que os tornam mais visíveis, até para o mercado independente que é forte que já começam dentro dos festivais. Assim você vai realizando a curadoria.”

 

 

Esse diálogo com os donos dos direitos dos filmes é difícil?

 

“É, porque as coisas são muito caras, embora estejamos em momento de crise mundial. Mas o que começamos a fazer foi que a Zeta Filmes se tornou uma distribuidora em 2013, porque a gente batalhava muito pra ter os filmes e havia muita concorrência. Os festivais competem entre si, então eles iam lá e reservam todos os filmes, e o Indie como era menor não conseguia competir. Isso nos deixava prejudicado, as vezes perdíamos filmes por conta disso.

Mas a gente sempre se preocupava em realizar uma programação um pouco lateralizada, transversal sabe? Pois a gente tinha nossas ideias que queríamos colocar em prática.

E fazíamos uma seleção, pois se passa 400 filmes, não há uma seleção. Você pega os filmes mais ‘hypados’ dos melhores festivais. Então se você vai passar 50 filmes, é diferente.. E não tem essa de não ver um filme, até porque é caro: você vai pagar o filme, a legenda, vai trazer ele para o Brasil.. para uma coisa que nunca viu? Não!

E ai começou minha atividade de compra de filmes. Isso fez o Indie tomar um poder maior.”

 

 

A ZETA Filmes foi muito em consequência do próprio crescimento do Indie e também de suas expectativas pessoais?

 

“É na verdade a gente já tinha essa ideia mas esperou o momento especial e para atuar na área do Indie. E a distribuidora também tem uma curadoria. E passamos a atender os cinemas.. É outro trabalho. Mas foi o que nos salvou como empresa, pois se ficássemos presos unicamente a uma atividade de produção cultural a gente talvez não conseguisse manter o Indie, pois a ZETA meio que equilibrou o Indie com seu serviço de distribuição, dando um respaldo financeiro a ele. Por exemplo, o filme “Aika” que passamos por ser um filme nosso! Pensamos: vamos passar em BH um filme que não passou em São Paulo, inédito, e que vai ser lançado pela ZETA. Isso nos dá um jogo de cintura maior..”

 

 

Uma inteligência também… Você tem que pensar em si, no seu negócio..

“É, você tem que pensar no seu negócio. É difícil também para a ZETA Filmes sobreviver como distribuidora porque é uma atividade complexa. Quase como se fossemos uma galeria de arte de cinema pois só temos no nosso catálogo coisas muito sofisticadas. Eu não digo elitista porque não acho que seja!”

 

 

Isso dá o maior orgulho né?!

“É, eu tenho o maior orgulho do meu catálogo! (risos) É assim: as vezes eu sei que um filme não vai dar bilheteria… e eventualmente não dá.. porque também o Brasil está numa situação em que é uma das últimas opções que as pessoas vão fazer é assistir um filme de arte.. E eu falo: nossa precisamos ter esse filme no nosso catálogo! Similar ao amor a um quadro de um artista que você quer tanto.. Curadoria é um pouco por aí: aquele gosto pessoal misturado com intenções.. A curadora no caso do catálogo da distribuidora é tudo misturado: paixão, gosto pessoal, as vezes até alguma coisa que você pensou para o filme em termos comerciais (algum potencial). É uma combinação disso tudo, mas também as vezes é só uma paixão pelo diretor ou por um filme especial. Exemplo é o filme de Lav Diaz (Estação do Diabo) que tem duração de 04 horas. Qual cinema que vai passar um filme de 04 horas?”

 

 

Paralelamente, você já comentou em outros momentos que existe sim um mercado de cinema independente. Curiosamente, os números em dinheiro e outros fatores, daquilo que é chamado de cinema independente americano são muito superiores com a realidade de outros cinemas independentes mundo a fora. Como é esse mercado?

 

“Quando você vai a Berlim e Cannes você vê que é um mercado que circula muito dinheiro tanto para produção quanto para distribuição. Mas o que tá acontecendo, e acho que é uma crise mundial, é em relação as salas de cinema. É nessa ponta onde está a deficiência. Pois mesmo no Brasil, a produção cinematográfica é bastante rica e profissionalizada, se tudo continuar do jeito que está. Aqui se você consegue recurso, consegue realizar uma produção muito profissional. Mas e na hora que vai exibir? Não há respaldo comercial! Não há salas suficientes, as pessoas não vão ver os filmes pois também não tem dinheiro para ir ver. E as salas não estão preservadas. Ao mesmo tempo, se passar esses filmes nas salas de shoppings ninguém vê, pois o público é conduzindo a assistir determinados filmes e isso é uma coisa que não vai mudar tão cedo, pois há quantos anos que estão formando esse público? 50 anos?   Ou seja, é uma série de fatores e nada é fácil. Se você passa um período longo formando esse público é fácil entender porquê eles não tem interesse em ver cinema independente, nem brasileiro, nem de lugar nenhum. E isso eu só fui entender depois que fui distribuir filmes. Paralelamente, vemos as ações de incentivo aos filmes brasileiros com bilheteria barata em determinado dia da semana, mas analisando friamente sabemos que é não é bem assim. Filmes brasileiros em geral não estão alinhados ao que eles vendem e ao que formaram de público durante todos esses anos.. Eles fazem mais para cumprir o marketing da empresa e outros motivos.. Por exemplo, a ZETA lançou o “Ida” e posteriormente ele foi indicado ao Oscar. Isso gerou um burburinho em cima do filme e fomos convidados a exibir em algumas salas comerciais. Nesse momento percebi que provavelmente nunca aqueles cinemas iriam exibir filmes independentes, e aquele público nunca seria ‘educado’ a gostar de um filme que não fosse do entretenimento comercial. E por exemplo, quando vejo um “Roma”, da Netflix – que inverteu a ordem das coisas lançando primeiro na sua plataforma para depois ir para os cinemas – aquilo ali é como se fosse o caminhão da Coca-Cola onde todo mundo vai correr para assistir, mas é vazio, não tem nada lá.  Papai Noel não existe.”

 

 

Como o ganhador de melhor filme no Oscar desse ano, um filme de engajamento antirracista, mas que na verdade é uma enganação…

 

É uma enganação. E o “Roma” pra mim é uma enganação: tem um diretor legal, uma fotografia legal, você questiona várias coisas abordadas em termos da questão do poder, mas o que ele representa no mercado de exibição é que ele é o carro chefe de uma empresa que em termos práticos quer que o cinema acabe. E para piorar, você vê cinéfilos, diretores, divulgando o filme. Porque eu acho que eles não param pra pensar. Mas a gente que está na ponta da distribuição e exibição sabemos os interesses em volta desse filme. É uma questão política também.”

 

 

Por outro lado, acompanhado o que a Disney, Amazon e Apple vem realizando se preparando para enfrentar a Netflix… E também pensando no mercado interno, onde alguns canais de TV compram filmes independentes.. Exemplo é o Canal Brasil que tem a exibição de curtas metragens na sua programação. Será que isso não representa um nicho forte?

 

“Eu não acredito. O Netflix começou exibindo um pouco de cinema independente, mas depois abandonou totalmente. E provavelmente a aposta deles nos próximos anos é investir em séries. Você ficar vendo um universo de série até morrer.. Um ou outro cinema independente eles compram. Por exemplo, houve aquele escândalo que a dois anos atrás no Festival de Cannes, dois filmes da competição eram da Netflix. E o festival preserva muito a questão da sala de cinema. Então eles proibiram que tenha produções da Netflix na competição, porque os franceses são muito apegados ao cinema. A politica do Netflix é incentivar que você assista filme em casa que é onde eles faturam. É uma política agressiva. E veja bem, não estou falando que não tem que existir! É bom para o mercado, eles demandam produções e fazem crescer o mercado, mas é uma propaganda sutilmente contra o cinema de rua e até mesmo o de shopping. Mas será que as pessoas querem só ficar em casa? Acho que tem essa necessidade de interação.

Mas não acho que o cinema vai acabar. Acho que ele tem que ficar mais acessível, em termos de dinheiro mesmo, de valor do ingresso.

O cinema de rua vem diminuindo muito. Fora Alemanha e Paris que ainda possuem muitas salas, vemos mais o crescimento das salas de shopping onde massivamente há apenas um tipo de filme sendo exibido. Temos alguns poucas salas no Brasil que resistem bravamente até hoje.”

  

 

Indo para a parte final da nossa conversa, como você vê o futuro?

 

“Eu não sou uma pessoa pessimista. Sou realista. Quando falei na abertura quis dizer que meu papel eu já cumpri.

Eu batalhei muito pelo que eu quero. Mas não posso forçar uma sociedade a querer aquilo que eu quero. Fico triste talvez pelo fato de mesmo vendo esse ativismo jovem, também tem o outro lado destruidor e da politica. E vivemos um momento econômico destruidor, tudo está fechando.

Então você vai na contramão até onde dá. A Zeta, e todos os envolvidos com ela,  nadamos contra a maré por muito tempo.”

 

 

Mas é importante fazer isso. Tem que ter pessoas que façam isso

 

“Sim. Estava vendo uma fala do físico Marcelo Gleiser que falou tudo: “Na física, o tempo só faz sentido se há movimento. Se não há movimento não há tempo”.

Precisamos nos movimentar sempre. Quando temos a sensação que o tempo passou rápido é porque geralmente você está ordinariamente fazendo a mesma coisa o tempo todo. E obviamente o tempo para você não tem diferença.

Acho que a gente nesse movimento nosso do cinema queremos criar constantemente novos paradigmas. Até para não ficarmos acostumados com nossas próprias escolhas. Isso que é mais difícil. Basta pegar o exemplo dos cinéfilos em São Paulo que exigem muito da gente de qual retrospectiva vamos fazer no Festival, por exemplo. É importante sim, mas também queremos coisas novas, frescas.

 

É o que sempre me atraiu no Indie: não ser óbvio. Nunca imaginei que fosse me atrair por um cinema ‘alternativo’, independente. Eu não sabia nada desse universo até frequentar o Indie. E quanto mais conheço mais me instiga.

 

“Aí tá vendo, você é um exemplo pra mim daquilo que eu investi. Ou seja, deu certo! Vou te congelar como prova viva que meu projeto funcionou! Porque olha só, você não era da área e se encantou e foi totalmente fisgado, e está pronto pra fazer o que quiser com isso. Você escreveu e pode se infiltrar mais ainda, se formar mais, talvez até dirigir um filme.”

 

 

Eu tive essa oportunidade de dirigir um filme quando estudei na Escola Livre de Cinema e foi uma experiência única e difícil. Na época arrastei meus colegas para o Indie.

 

“E não é fácil lidar com os problemas de uma produção. E que bom que você gosta de fazer laços trazendo as pessoas ao festival! Certamente alguns gostaram e outros nem tanto. Engraçado que a gente fazia uma espécie de curadoria de gente na porta do cinema indicando os filmes de acordo com o que sentíamos das pessoas. Mas isso é complexo porque as vezes as pessoas nos surpreendem por gostar de filmes que não imaginamos.. Então não dá pra saber. Não falávamos se o filme é ruim ou não. Comentávamos: experimenta!  Inclusive falávamos: gente goste ou não do filme não me interessa tanto, traz uma coisa a mais. Gosto não se discute.

A gente trabalha com curadores com interesses paralelos, mas há alguns que gostam de filmes que eu não gosto e está tudo certo o trabalho caminha bem.”

 

 

Depois que tive a experiência de estar atrás das câmeras, minha percepção sobre a dimensão e dificuldade do fazer audiovisual mudou completamente. E apesar do ‘Entrando Numa Fria’ cobrir em maioria os filmes do circuito comercial minha análise não é crítica demais porque senti na prática as dificuldades impensáveis do que é fazer um filme.

 

“Sim você não pode ser muito cruel. Há críticos extremamente cruéis. Eu já fui crítica. Acho que todo curador é de certa forma um crítico. A Zeta tinha um site que escrevíamos críticas por um alguns anos. Alias tínhamos um crítico, o Bernardo Krivochein, que era muito bom e fazia o maior sucesso e escrevia dos filmes mais diferentes, e faz falta, pois era um colaborador maravilhoso. Posteriormente tivemos que dar baixa no site e perdemos muitos das suas produções. Esse momento fez parte dos inúmeros caminhos e projetos aos quais a Zeta trilhou antes de ser o que é hoje.”

 

 

Passando o olho nos catálogos dos outros anos do Indie, me chamou atenção um texto seu que representa muito esse momento de maturidade e colheita. E uso também como homenagem a você, pois é importante falar da importância do trabalho das pessoas. Por isso digo, Francesca, seu trabalho é sensacional e importantíssimo. E obrigado por esses 18 anos de festival! O texto é o seguinte: 

 

“O tempo é uma grande preocupação

Sabemos que nada vai ficar para sempre.
e na verdade sabemos pouco sobre a permanência.

O que ficará daquilo que estamos construindo

Quando começamos a penetrar nesse universo do cinema,

começamos a ter consciência do tempo/espaço

Um outro estar no

aqui&agora do cinema.

Uma espécie de imortalidade.

Ilusório ou não, naturalista ou não.

Construídos na mesura da transitoriedade.
ele, cinema, luz ideia imagem tempo imatéria conceito,
eternidade.”

 

É isso, rsrs. Você que escreveu!

 

“Ai que bonito! Que ótimo! Tá vendo que a gente nem lembra o que escreve! Que legal, muito obrigada, fiquei bem emocionada sabe, porque em geral as pessoas não valorizam o que a gente faz.

Minha terapeuta uma vez disse: você tem noção da importância do que faz e que ninguém faz mais essas coisas?

Somos tão ocupados com o cotidiano que não nos damos conta disso.”

 

 

E assim encerramos essa gratificante conversa com vontade de continuar por mais algumas horas. Talvez, tanto eu quanto Francesca não percebemos que estávamos ali a um bom par de tempo. Nessa caminhada imprevisível dos que amam e vivem do cinema os amigos de jornada sempre encontram conforto mutuamente. 

Essa entrevista me inspirou a escrever uma coluna mensal que sai ainda esse mês e será pautada na imprevisibilidade do cinema que pode ser tudo o que quiser. Aguarde ! 

Até breve

Vitor Damasceno

 

Conheça o Indie:   Site Oficial, clique aqui

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

*Agradecimento especial a Suellen Nabila que me acompanhou e tirou as fotos.

 

 

 

 

Vitor Damasceno

Estudante de cinema atualmente vivendo em Buenos Aires.

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