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O Novo Evangelho | Crítica

Milo Rau apresenta ambicioso filme híbrido que reúne amor pelo cinema, ímpeto humanitário em uma das histórias mais tocantes da tradição humana

Já no início do documentário “O Novo Evangelho“, a montagem faz um corte seco entre uma conversa dos realizadores e a realidade a ser retratada pela produção. Depois de mostrar a colina onde foram filmados  por Pier Paolo Pasolini, “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964) por Mel Gibson, “Paixão de Cristo” (2004) ouvimos: “E se você seguir por alí vai encontrar a via dolorosa”, e corta para uma caminhanda em meio à rua precária do gueto ao qual os imigrantes são relegados.

Matera é conhecida como a Jerusalém do cinema, e àquela época foi eleita Capital Europeia da Cultura. Ao mesmo tempo, diante da crise dos refugiados, e dentro de um contexto de exploração e escravidão moderna, como muitas cidades do sul da Itália, recebe um grande fluxo de imigrantes, o que exigiria profunda atenção das autoridades locais. Isso não acontece. Na Europa, a xenofobia é uma das maiores marcas da sociedade contemporânea e o governo usualmente abandona, quando não persegue, a população migrante.

O novo evangelho

Para abordar tudo isso, o principal colaborador de Rau é Yvan Sagnet , escritor e ativista dos Camarões que iniciou a primeira greve de trabalhadores imigrantes na Itália em 2011, quando trabalhava nas plantações de tomate de Nardò. Sagnet interpreta Jesus na peça da Paixão de Rau, e também lidera o movimento “Resistência à Dignidade”, um grupo aberto formado por imigrantes e refugiados que lutam por seus direitos fundamentais e contra a exploração por parte do sistema político italiano.

Nesse ponto, o olhar do expectador brasileiro encontrará muitas semelhanças com o contexto brasileiro em “O Novo Evangelho”. A itália não é um país pobre, tal qual como não o é o Brasil, e tanto lá quanto aqui é a força dos movimentos sociais atuantes por meio de ocupações e ações públicas que permite a luta pela dignidade. Os refugiados exigem respeito básico e tratamento humano na preparação da encenação da peça bíblica, e o filme é feliz em dar voz, por exemplo, ao próprio prefeito de Matera, que faz na peça faz o papel de Simão de Cirene. Ao lado de depoimentos sobre a desumanidade da polícia, ver o política dizer que não gostaria de interpretar Pilatos, ganha ares de tragicomédia.

Os atores de Jesus e da maioria de seus apóstolos são negros e muçulmanos e as imagens de seus rostos fortes e orgulhosos, vestidos com trajes bíblicos e liderados por Sagnet, subindo as escadas antigas que levam à cidade velha de Matera, carregando um amplificador e gritando “Resistência é dignidade!” produzem uma cena poderosa. A produção não se priva de demonstrar que está fazendo uma pergunta simples: De que lado Jesus estaria?

Além disso, encontramos várias camadas na história, o que é complexo o suficiente por si só. A repetição de cenas do filme de Pasolini e a própria presença de importantes coadjuvantes, como o Jesus de Pasolini ( Enrique Irazoqui ) ou a Virgem Maria de Gibson ( Maia Morgenstern ), somada à espetacular fotografia mostram que o filme eleva sua mesnagem também estéticamente. Ao passo que há uma cena lindíssima de cristo sobre as águas, a ceia é realizada sobre escombros e mesas de plástico, sempre nos lembrando que a narrativa é sobre a devastação que o capitalismo gera.

“O Novo Evangelho” faz parte da 10 Mostra Ecofalante de Cinema. Veja o Trailer.

Direção: Milo Rau
Título Original: Das Neue Evangelium (2020)
Gênero: Documentário | Drama
Duração: 1h 47min
País: Alemanha | Suíça | Itália

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