Resenhas

Resenha: À sombra da figueira, de Vaddey Ratner

_SOMBRA_DA_FIGUEIRA__1445436349532911SK1445436349BNome do livro: À sombra da figueira
Autor: Vaddey Ratner
Editora: Geração editorial
ISBN: 9788581302539
Ano: 2015
Páginas: 360
Nota: 3/5
Onde Comprar: Compare Preços

Para a menina Raami, de sete anos de idade, o fim abrupto e trágico da infância começa com os passos de seu pai voltando para casa na madrugada, trazendo detalhes da guerra civil que invadiu as ruas de Phnom Pehn, a capital do Cambódia. Logo o mundo privilegiado da família real é misturado ao caos da revolução e ao êxodus forçado. Nos quatro anos seguintes, enquanto o Khmer Rouge tenta tirar da população qualquer traço de sua identidade individual, Raami se apega aos únicos vestígios de sua infância — lendas míticas e poemas contados a ela pelo seu pai. Em um clima de violência sistemática em que a lembrança é uma doença e a justificativa para execução sumária, Raami luta pela sua sobrevivência improvável. Apoiada no dom extraordinário da autora pela linguagem, Sombras da Figueira é uma história brilhantemente intricada sobre a resiliência humana.

Finalista do Prêmio PEN Hemingway este livro vai levá-lo às profundezas do desespero e mostrar horrores abomináveis. Vai revelar uma cultura maravilhosamente rica, lutando para sobreviver através de pequenos gestos,. Vai fazer com que jamais sejam esquecidas as atrocidades cometidas pelo regime Khmer Rouge. Vai lhe encher de esperança e confirmar o poder que há ao se contar uma história de nos elevar e nos ajudar não somente a sobreviver, mas à transcendência do sofrimento, da crueldade e da perda.

 

Este livro é ficção, mas também é a história da infância da autora. Camboja, 1975, um grupo socialista ganha força nas áreas rurais e toma a capital do país, promovendo o extermínio da monarquia, das classes intelectuais, de qualquer pessoa que tenha fortes laços com o ocidente e todos consideradas “indesejadas” pelo novo governo.

Raani é uma menina de apenas 5 anos vivendo no conforto da monarquia cambojana, mesmo com algumas sequelas da poliomielite é saudável e inteligente, muito apegada e carinhosa com os criados da casa. Seu pai é um poeta, um intelectual educado na França que compartilha com outros visionários o ideal de um Camboja onde a população não sofra, seguindo tendências socialistas que eram comuns na Ásia dos anos 1970. Entretanto a visão extremista dos soldados do Khmer Vermelho, a violência gratuita e a dominação pelo caos não fazem parte do futuro do país que eles tinham em mente.

Criada entre histórias e livros, Raani é uma das milhões de vítimas indiretas de um dos maiores genocídios da história contemporânea. Subitamente arrancada de casa junto com sua família, todos são expulsos para as zonas rurais, onde enfrentarão anos de trabalhos forçados. O pai de Raani, após ser identificado como membro da monarquia, é levado e simplesmente desaparece. Segundo estimativas posteriores, algo entre 1 e 2 milhões de pessoas morreram durante os quatro anos do governo do Khmer Vermelho no Camboja. O número é inexato em função do caos; muitas pessoas fugiram do país, mudaram de nome ou assumiram a identidade de outras para não serem identificadas por suas profissões. Médicos, advogados, professores, todos que tinham um nível de instrução mais alto foram caçados e exterminados, toda uma elite cultural desapareceu em questão de meses, obrigando a população a regredir a uma situação não muito diferente da idade média. Até hoje o país luta para se reerguer, mas esse curto período de quatro anos é uma cicatriz aberta para a população mais velha.

Raani é literalmente jogada de um lado para outro em diversas partes do país, conforme as vontades arbitrárias dos soldados do Khmer Vermelho, em sua maioria filhos de agricultores analfabetos que viram nessa revolução uma oportunidade de subir na vida sem esforço.

A mãe de Raani, Aana, é de origem plebéia e se adapta um pouco mais facilmente à vida no campo, apesar de todo o sofrimento e das perdas de parentes próximo, faz o que pode para manter a filha viva. A irmã mais nova de Raani, Radana, é ainda um bebê e exige cuidados constantes.

Depois do pai de Raani, o personagem que achei mais interessante é Big Uncle, tio de Raani e apelidado assim por ter uma altura acima da média. Esse homem é uma incorporação da situação do país: um gigante prostrado e indefeso contra os ataques dos opressores que ameaçam sua família. Apesar de todo seu vigor físico, é facilmente feito refém para proteger seus parentes.

Além da história de vida da personagem disfarçada de ficção, o livro também fala do poder das histórias e como a esperança em um futuro melhor ajudou a manter vivas as pessoas que tanto sofreram sob um regime que pregava a libertação dos imperialistas opressores, enquanto promovia execuções em massa nos campos de concentração. As parábolas budistas, os deuses hindus e as lendas locais são exploradas conforme a jornada de sofrimento dos personagens se desenrola, a situação do país piora, a fome avassala as pequenas comunidades e as pessoas continuam a desaparecer ou são executadas em público. A fé, tanto quanto a esperança, tornam-se as únicas conexões que a população tem com um passado recente, de uma situação de vida completamente diferente do que é subitamente imposto arbitrariamente. Sob vários aspectos é semelhante ao que muitos brasileiros experimentaram durante a ditadura militar, mas aplicado a toda população do país.

Misericordiosamente o livro nos poupa da violência sexual, mesmo que abusos sejam cometidos de todas as outras formas possíveis. Amplamente baseado em experiência pessoal, não ter sido submetida a esse tipo de violência ou é um milagre, ou foi propositalmente mantido à margem da narrativa.

Como leitura adicional sobre um tema semelhante recomendo o livro “Fuga do campo 14”, escrito pelo jornalista Blaine Harden (editora Intrínseca) após dezenas de entrevistas com Shin, conhecido como o único norte-coreano que já conseguiu fugir de um campo de concentração para prisioneiros políticos. Estes campos são destinados a pessoas ligadas a partidos contrários ao governo ditatorial e a parentes próximos até a terceira geração. Portanto inúmeras crianças nasceram e morreram nestes campos, anônimas, sem envolvimento algum com o governo. Parentes de pessoas que fugiram para a Coréia do Norte durante o período de guerra entre os dois países também foram mandadas para estes campos, ignorando que um dos irmãos do líder fundador da Coréia do Norte também fugiu para o sul, afinal estas regras só se aplicam à população.

Jairo Canova

Jairo Canova é Administrador e gosta de livros mais do que imagina.

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