Resenhas

Resenha: Habibi, de Craig Thompson

65052_ggNome do Livro: Habibi
Nome Original: Habibi
Autor(a): Craig Thompson
Tradução: Érico Assis
Editora: Quadrinhos na Cia.
ISBN: 9788535921311
Páginas: 672
Ano: 2012
Nota: 5++/5
Onde Comprar: Compare Preços

Habibi é a saga de dois escravos fugitivos, unidos e separados pelo destino, vivendo no limite que separa a tradição da descoberta. Dodola, uma garota perspicaz e independente, foge de seus captores levando consigo um bebê. Eles crescem juntos no deserto, sozinhos em um navio naufragado na areia. Em meio a sentimentos cada vez mais conflitantes, os dois passam o tempo contando histórias. Assim, somos apresentados também à origem do islamismo e de suas tradições, conforme as narrativas se combinam numa trama de aventura, romance, filosofia e tragédia. Para contar a saga de Dodola e Zam, Craig Thompson recorreu ao Corão e às Mil e uma noites. Do primeiro, colheu o próprio estilo do livro, inspirado na caligrafia árabe, e também as narrativas do texto sagrado dos muçulmanos, recriadas com maestria pela pena do autor. Do segundo, tirou um cenário fantasioso, repleto de lendas e histórias, uma versão quase mitológica da nossa ideia de Oriente. Ambientado nos dias de hoje, Habibi não se passa em nenhum país conhecido. É uma terra igualmente fantástica e concreta, onde questões presentes se misturam a indagações ancestrais. Crítica social, questionamentos ecológicos, paralelos entre religião e amor: tudo encontra seu lugar nesta narrativa tão épica quanto particular. Fruto de sete anos de pesquisas e trabalho, Habibi é um monumento do quadrinho moderno e uma resposta atual a questões que nos perseguem desde sempre. – “Cortante, Habibi é um enorme feito de pesquisa, cuidado e tinta preta, e um lembrete de que todos os ‘povos do livro’, apesar das diferenças, dividem um mosaico de histórias.” Zadie Smith, Harper’s Magazine.

 

Triste, emocionante, belo e violento, assim como o Livro das 1001 noites e a própria vida, Habibi está no meio termo elevado entre uma história em quadrinhos e uma obra de arte. A história poderia ser contata na forma de um longo romance, mas perderia o imenso número de ilustrações e as figuras de linguagem não seriam tão fortes, variando do trágico ao cômico sem desviar a narrativa.

Para Craig Thompson não basta fazer as citações do Alcorão, tudo é usado como uma metáfora da vida dos personagens, inclusive eventos que irão se conectar no final da história. Os recursos de metalinguagem são tão integrados na narrativa que explorá-los em outro formato (romance, novela, conto) perderia a beleza e a simplicidade eficiente adotada nos quadrinhos de Habibi.

Na história, Dodola é vendida em casamento aos 9 anos a um escriba, que lhe contava as histórias que estava copiando do Alcorão, do “Livro das 1001 noites” e de poetas árabes. Quando são assaltados por bandidos, ele é morto e Dodola é vendida como escrava, mas acaba fujindo com outro órfão, Zam, de apenas 3 anos. Eles se escondem em um navio encalhado no meio do deserto, onde um dia fluía um rio, e sobrevivem como podem. Para acalmar Zam, Dodola lhe conta as histórias dos Profetas, de Reis e de lendas que ouviu do falecido marido. Dodola tem que vender o corpo para os homens que cruzam o deserto em troca de comida, mas tenta se manter sã sabendo que é sua responsabilidade alimentar Zam. Em flashes da narrativa, descobrimos que eventualmente Dodola irá para o harém do Sultão, onde está grávida e lamenta ter se separado de Zam. Então a narrativa avança e recua para acompanhar a trilha das dores de cada um, na esperança de que um dia poderão ficar juntos.

Um hilário personagem secundário é o carrasco do Sultão, que também trabalha de jardineiro no palácio. Solícito, sempre está pronto para sugerir uma execução ou tortura. Se alguém sugere uma mutilação, ele se oferece já com as ferramentas em mãos, mesmo quando não estava presente nos quadros até então! A quantidade de personagens é muito grande, mas todos têm personalidades bem fortes, distintas e bem trabalhadas, sempre agindo de acordo com sua natureza e quase sempre com referência a textos religiosos e poemas.

Outra cena brilhante é quando Dodola começa a estudar na biblioteca do Sultão e a página 250 em diante é tomada completamente por esquemas dos ensinamentos de Aristóteles e Jabir Ibn Hayyan, a beleza dos desenhos matematicamente interpostos é usada em toda sua complexidade para contar a história, unida ao conhecimento que flui através da personagem, filosofias que passarão a integrar a narrativa. Lembrando que na cultura muçulmana Alá não pode ser representado como uma pessoa, por isso são usados esses complexos padrões geométricos, o que ajudou muito a evoluir a matemática e a lógica ao criar essas intrincadas decorações.

Apenas pelos cenários e problemas que os personagens enfrentam, essa história poderia se passar no ano 300, 1100 ou 2015. A simplicidade torna essa história universal, criando mais uma ponte entre o oriente e o ocidente através do oriente médio. Quando vemos um carro, motocicleta ou motores, são estranhos objetos alienígenas em meio aos cenários tribais, de casas simples, costumes ancestrais e caravanas que cruzam o deserto sobre camelos.

Com as notícias recentes da destruição de cidades históricas na Síria e no Iraque, fico entristecido ao ver em Habibi um ocidental levando adiante uma cultura milenar, que já foi tão avançada em medicina, filosofia, matemática, arquitetura, química e astronomia, mas está estagnada por tantos séculos na intolerância religiosa e extremismo, destruindo tudo o que os antepassados criaram. Esse conhecimento ficou de legado para o resto do mundo, mas os nativos da região condenam os próprios filhos a lutar e morrer pelo solo onde nasceram. Esse é só um dos questionamentos que a leitura de Habibi despertou em mim, e se baseia em eventos posteriores ao lançamento do livro (2012).

Não consigo imaginar o imenso trabalho de pesquisa envolvido na elaboração de Habibi. Para alguém não nascido na fé muçulmana, além das inúmeras citações do alcorão e do “Livro das 1001 noites”, há diversas referências a poetas, caligrafistas e filósofos árabes.

Expresso um imenso PARABÉNS à equipe da Companhia das letras, que trouxe para o Brasil uma obra tão significativa para a cultura. Não se deixe assustar pelo grande número de páginas e volume do livro, é possível começar e terminar de ler no mesmo dia, mas a impressão que ele deixa é duradoura.

Não encontrei erros de digitação ou problemas com a edição, toda a equipe está de parabéns. A capa é praticamente a única cor que você verá em todas as páginas, mas isso é a marca registrada do autor. Os padrões de decoração e molduras são bem conhecidos da arte muçulmana, se encaixam perfeitamente para que o livro seja reconhecido imediatamente pelo que ele é.

Você já pensou o problema que causaria os coelhos e outros animais que se reproduzem rapidamente dentro da arca de Noé? A página 437 sugere como isso pode ser revolvido.

Não perca uma pequena referência à Alice no país das maravilhas na página 271.

Craig Thompson nos lembra que não somos tão diferentes assim, que contar histórias é universal e o poder embutido nas palavras é maior do que nossas diferenças individuais.

Jairo Canova

Jairo Canova é Administrador e gosta de livros mais do que imagina.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.